Um menino no mar, cercado de primas, um mar de primas (tem coisa mais antiga que uma prima?), todos peladinhos e nuazinhas caminhando com os pés nas pedras. As pedras furam uma massagem pontiaguda, o sol lasca a pele fina. São crianças, que delícia. Uma criança é uma delícia, tem boca em todos os olhos e tudo queima e não queima.
O que se faz de um mito de origem? Um disco, talvez. Chamo “mito de origem” uma dessas cenas de fundo que nos acompanham a vida e fundam, se decidimos contá-las, prenúncio e retorno eternos.
César Aira narra seu mito de origem de escritor, quando cruzou pela primeira vez, aos dezoito, com um livro de Duchamp. A mãe de um amigo descreve o dia de seu divórcio: “Meu nascimento do fim”. Ouvi sobre esse menino no mar. Não quero matar o relato com as solenidades do mito, muito menos com as armadilhas da origem, só oferecê-lo como uma espécie de “cena-presença” (jamais estática) na audição de Pássara, o novo disco da velha-nova faceta de Bruno Cosentino, nomeada Clemente, com Guilherme Lirio, Marcos Campello e Pedro Fonte. Parece boa companhia para um disco terno, melancólico e vibrante que persegue questões insistentes (nunca deixam de ser questões) nos trabalhos do artista: corpo, tempo, amor, origem, fim.
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Em um dos discos anteriores de Clemente, Corpos são feitos para encaixar e depois morrer (2017), um desejo estranho e erótico chama a atenção: “Eu quero ser sua mãe”. É o nome da quinta canção, que ganhou clipe. Em “Ascenção”, letra do próprio Clemente e primeira canção de Pássara, partimos também de um apelo endereçado e cantado com tristeza doce, em primeira pessoa: “meu grito era seu”.
Estamos no espaço e na terra, fomos inventados com a “conjunção dos astros pássaros” e “as entranhas de raízes ancestrais”. Tudo é melodioso, é triste e é doce. Acompanhamos o canto que vai ganhando contornos sensuais e resvala na parentalidade, ainda com doçura (“quando você me disse/ nossos filhos são lindos”), até desaguar em uma tristeza algo mais grave: “se enganou”.
Depois da virada do engano, a guitarra cada vez mais intensa e rouca dá corpo a essa “ascenção” com ares de descida — vai, vai, chega ao ponto sem retorno, “quando fugiu e me pediu pra não lhe procurar mais”… e retorna, devolve a melodia e a voz suaves, a “solidão de menino”, volta ao lugar (que já é outro):
mar que era mar
e o céu no seu lugar
De saída, a canção parece encarnar a tônica que atravessa o disco como um todo: um movimento inquieto por entre os mistérios de Eros e Tânatos, ora remetendo à origem do mundo, em um mar quase uterino, ora evocando o enigma da morte (“aqui nesse mundo/ sou eu quem quis matar”, assim sem complemento nem maiores explicações, como costuma ser).
Se a dicotomia parece esquemática, é falha minha. O disco não polariza, serpenteia por entre; por entre a pureza e a sujeira, a falta e o excesso, o amor e o sexo, a poesia e a música. Em lampejos, reconhecemos os contornos próprios de cada faceta, mas estão sempre embrenhadas, tensionadas e ritmadas. Permanece o vislumbre de uma terceira margem.
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Uma experiência: na primeira vez em que escuto a segunda canção, grata surpresa e raro escape para uma ouvinte infame que está sempre pensando demais na letra: “Boi que fala”, ironicamente, emudece e me embala pela melodia. Entregue aos acordes solares, ouço a letra esvanecer; não ouço, enfim, ou não registro bem as palavras.
Na segunda vez, surpreendente surpresa: não havia atinado para a erótica explícita, cara entre coxa, língua, peito rebentado; sexo. Não é novidade, outros trabalhos de Clemente também caminham por essa via. Seria o efeito estendido da doçura triste dessa primeira “Ascensão” que teria me cegado os ouvidos para a atmosfera quente de “boi que fala”, com sua guitarra e arranjos coloridos? Talvez os cavalgamentos e quebras nos versos enevoem a cena (pausas, pequenos atrasos e atropelamentos, sentidos múltiplos como em “no fundo do negrume do meu/ sexo teus olhos” ou “na tua língua dura o gosto de sangue”) — o sexo é explícito, mas não óbvio.
O fator de peso me parece ser o que também pesa (peso-pluma) sobre o disco como conjunto: Pássara é todo atravessado por um certo “princípio de delicadeza”, que se esgueira mesmo em canções mais soturnas.
Encarnado na dicção detalhada de Clemente, o princípio ganha tons brincantes nas aliterações divertidas e precisas de “boi que fala” (“excitada ferida que à vida fodida se furta”; “claro clarão à vista”; e o amor-arco-íris-ambíguo “oxum oxumaré”). O “s” e o “j” chiados ao longo do disco, entre o sotaque carioca e o acento próprio de Clemente, lembram que a delicadeza é perversa: há sim brutalidade, acúmulo, resto, algo que arrasta e gruda, visco no ouvido. “Boi que fala” é sorrateira, ao sabor dos quadros de animais carnavalescos de Paula Rego, por exemplo/se quisermos, feitos de sangue e fantasia.
É o encontro da delicadeza com a erótica explícita, com o grave e o grosso das canções, com o excesso, enfim, que parece fermentar essa tensão Eros-Tânatos muito peculiar no álbum. O prazer da minúcia é malicioso e o princípio da delicadeza ganha seu brilho máximo justamente quando tensionado, na linha da “euforia da dor”, tão brasileira. “Eclipse solar”, diz a letra de Clemente, e termina em “alegria, silêncio e horror”.
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Em “Lábios de maio”, outra canção colorida, prima ou até irmã de “Boi que fala”, é mais difícil deixar de ouvir a explicitude — o que não retira sua leveza dançante. Com jeito de “hit”, podemos ouvi-la como ode ao sexo e à música (“meus dedos tocam tua glande pequena/ por onde te abres sincopada”). Ambos balançam quadris… O refrão “anca de quero mais/ cabeça de jamais/ te ter macia” consegue a proeza do verso chiclete, sem perder sua estranheza.
Lembro aqui de Bad Bahia (2020), disco de Clemente imediatamente anterior a esse, e de mais um verso “erótico-filial”, por assim dizer, da canção “Nas tetas da loba”: “serei seu pai e você minha mãe?”. É a perda do erótico? Ou estamos diante de uma “erótica mítica” que mata a origem, quero ser sua mãe mas mãe não há mais — resta mamar nas tetas da loba? Não se sabe mais quem é mãe, quem é filho, e quem já se apaixonou, atesta: dá vontade de ser pai, mãe, filha, loba, útero. Um por dentro do outro. A fantasia roça na completude (- frustrada, erótica, infantil): um movimento em direção ao mistério sensual, seja da natureza, do corpo, da paixão.
Retomo discos anteriores de Clemente porque reconheço em Pássara, se não mais a subversão das filiações, propriamente (agora ela persiste na mistura de gêneros musicais, por exemplo), algo dessa “erótica ancestral” (vamos experimentando nomes), alocada num futuro que já sempre esteve lá, pronto para ser profanado. “Lábios de maio” não nomeia esses personagens familiares, mas o sexo aparece mais uma vez ligado ao místico, à terra (“teu monte nu terra aberta”) e, principalmente, à troca de posição. A sonoridade faz jus às assonâncias, inversões, junções, aliterações constantes.
Várias forças, porém (repito, repito), tensionam o disco. O maternal e terroso se enreda ao material e terreno. O “t” forte quebra como “quadris quebram do reto a tua gorja” (e está em muitos “teus” e “tuas”, além de estacar fragmentos como “tocam tua glande” / “te ter macia”/ “teus líquidos que trazes contigo”/ “tremores das tuas coxas”), “u”, “a” e “s” arrastam essa dança-luta, novamente em primeira pessoa (“mordo urro encurralado”/ “secreto rasto almíscar amar rubro estanca”). O resultado é uma impressão enroscada e familiar (ao menos para os familiarizados) do “sol sem nexo” que cheira e acende o sexo.
Essa “política do terceiro” que dilui dicotomias poderia nos levar também a Exu, figura já mencionada por Clemente: “o primeiro nascido, filho da mãe e do pai primordiais, andrógino, elemento dinâmico, sexual, individualizador”, como disse em entrevista. Não há menção direta em Pássara, mas tampouco uma mirada simplista (Exu não é mero “tricskter” manifesto em trocadilhos, ou algo do tipo). Clemente entretém um jogo intrincado que mobiliza o “elemento dinâmico”, sempre em alusão a um movimento primeiro, primordial, fundamental, ao recomeço e ao cruze de cosmogonias. Insiste também, discretamente, em Deus.
Outro “tema-obsessão”, Deus faz aparição em álbuns anteriores, quando “zombamos de Deus”, “Eu, sem Deus, centro de tudo que existe”, o desejo “é um Deus/ e outro Deus é o momento”. Em “Lábios de maio”, o verso “dentro deuses nascendo deuses morrendo” encapsula a abordagem nunca una: o divino está simultaneamente presente e ausente. Ressoa, absoluto, em ecos que lembram catedrais (na canção “Não seremos os mesmos”, por exemplo, ou nas palmas com pegada ritual de “Devil got my woman”), e se faz mundano no rumorejar sensorial que fecha e brecha “Lábios de maio”. A epígrafe do álbum ainda faz referência a Jó e ao redemoinho — a sensação é mesmo de um corpo-redemoinho que articula mundano e sagrado, como nos rituais.
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Entre as duas canções primas-irmãs, está uma versão da apaixonante “Evidências”, balada ralentada que deixa ouvir com calma a intensidade da composição de Paulo Sérgio Valle e José Augusto. O leve atraso no canto, como se as palavras pesassem, o arranjo aveludado que deixa a voz em destaque, as palavras bem pronunciadas, tudo parece acenar para o amor-paixão em sua face mais obstinada (deliciosa, agoniante). Lembra outra regravação de Clemente, “Fui fiel” (2019), do compositor Pablo, e comprova seu olhar singular para a releitura.
Ao longo do disco, as escolhas certeiras convocam do sertanejo ao soul e a interpretação reveste “Evidências” de um quê derramado, performático, mas contido — em “tom menor”, se comparada à gravação original, continua daquelas deliciosas canções para ser triste, em que comove o desejo da comoção. A segunda voz sutil, ecos solenes e o som-gemido-agudo final compõem mais uma canção de atmosfera misteriosa e amorosa, de garras subterrâneas e macias:
Eu estou em tuas mãos
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Seguimos em trânsito. O pêndulo gravita em direção à matéria, à miséria, e aqui aparece algo novo no disco: o dinheiro.

Prenúncio do lado b, “Luscious lady” é mais uma releitura espirituosa, que mantém o soul, o beat e as cordas da canção original gravada por Darondo (figura interessantíssima, pouco conhecida, que passou pelo soul, funk, blues com sua assinatura tão particular, a bordo de seu Rolls-Royce Silver Cloud com placa personalizada, casaco de pele, cigarros e anéis — e mulheres, à la luscious lady. Teve suas idas e vindas na música, foi massoterapeuta, businessman astuto, abriu para James Brown e por aí vai).
“Diamond rings / buy you everything”, diz o refrão regado a sopros, e lembro de um trabalho de Ted Noten (acima, foto amarela), designer e joalheiro holandês. Contexto: em 2007, uma iniciativa da prefeitura de Amsterdam de combate à exploração e ao tráfico humano associados à prostituição transformou uma série de bordéis em estúdios de arte. A tentativa de gentrificação obrigou os bordéis a se transferirem para ruas próximas e tornou-os vizinhos de ateliês como o de Noten. É nesse cenário que o designer lança o projeto “Be nice to a girl, buy her a ring”, composto por uma máquina de venda de comida automática cheia de anéis de metal vermelhos. A ideia era que qualquer um “a caminho da mulher escolhida, pudesse convenientemente comprar um anel e dar a ela de presente”. Não se sabe quantos anéis chegaram a prostitutas (muitas recusaram as bijuterias baratas), mas a maioria definitivamente foi comprada por amantes do design.
Mais do que avaliar qualidades ou controvérsias do projeto, pensemos nas relações entre arte, sexo e dinheiro que o contexto todo mobiliza. Como em “Luscious lady”, fica uma provocação aos bons-mocismos que exigem da arte e do sexo sua total desassociação do capital. Artistas e amantes verdadeiros não podem ser comprados com anéis de diamantes (é muito deselegante falar de dinheiro, o chique é só ter)…
O dinheiro implicaria então uma sujeira profundamente moral, ainda mais condenável do que o excesso e a transgressão como aparecem até aqui no disco. A matéria, enquanto parte da poética do corpo que se desenrola nas canções, agora é associada não só à despersonalização e ao prazer da carne enquanto dimensões humanas fundamentais, mas ao valor de troca e uso da vida material.
I’ll buy you diamond rings
and everything
to fill the heart desires
do me baby
i wanna be your man
“Leer por dinero para mí es una parte esencial de leer”, disse Tamara Kamenszain. Em alguns lugares, segundo me contaram, as pessoas colam dinheiro na testa dos músicos de rua se gostam do que ouvem (não consegui confirmar a história, mas a palavra “busker”, comum na Inglaterra para designar artistas de rua, provavelmente se liga ao espanhol “buscar”. “Buscón”, hoje, refere-se principalmente a mulherengos e prostitutas). Com “Luscious lady”, o apelo ao outro segue a linha do álbum, mas ganha o ar desencanado e irônico da ostentação. Ainda assim, a leveza da voz de Clemente e os arranjos “limpos” se impõem e jogam a favor da erótica borbulhante de Darondo, testando o fio elétrico que enreda comércio, fantasia, fetiche. Do corpo, se quer uma ideia, um pedaço?
Wanna bite ya
wanna bite ya
Com dente e língua, as canções em inglês (idioma do poder, da troca, do uso?) parecem compartilhar, mais ou menos diretamente, algo desse gosto pela matéria, pelo chão sujo das coisas e dos corpos. Sem moralismos, tudo se consome e é consumido. Além de “Luscious lady”, temos a versão de “Devil got my woman”, original de Skip James, atravessada por um transe de palmas e atabaques que colaboram para a aura algo sinistra e penetrante da canção, e a composição de Clemente e Sylvio Fraga Netto, “Old salad”. Nessa última, batida rock e stacatto marcam um embate entre frieza e descolamento de qualquer afeto (“you don’t care in so many ways”) e uma angústia subjacente, reptiliana: “oh you don’t know the pain of nothingness”…
Em ambas, não se fala em dinheiro explicitamente, mas, à moda old blues, sobra traição, falsidade, mulheres frias pelando feito o demônio, corações de homens pisoteados, raiva, desejo sexual e outras forças pulsionais vividas sem negociação:
I’d rather be the devil than to be that woman’ man
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“O caminho é sem volta”, depois de “Luscious lady” e antes das duas outras, também traz algo desse dispêndio. Pisamos em um chão grudento de fim de festa, típica cola de líquidos (doces, azedados) que condensa um resquício de euforia e o anúncio da melancolia. Sentados no meio fio ao som rasgado da decadência, ouvimos o visco de um amor naufragado que ainda pega sopros de ar. Cama, quarto, “tua casa, teu menino”, noites “mal dormidas” e dias “consumidos”, todos simultaneamente cotidianos e absurdos. O costume (“um beijo sujo na calçada / a mesma história repetida”) é o da madrugada.
Quase sinto as longas mãos sujas de Dirty, personagem de O azul do céu, de Bataille, me fazendo um carinho incômodo e irresistível (“Ela chorava como se vomita, com uma louca súplica”, essa é Dirty logo no início do livro). Mas aqui o eu-lírico só – quase – chora (“a mãe, o filho, eu quase choro / mas teus olhos”), e novamente a nostalgia de uma pureza inventada ressurge (ou sua reminiscência, ao menos) e embaralha mães, meninas, filhos e pernas.
de pernas abertas
você é uma menina
e eu te quero
O longo agudo final é o trecho sem letra (e são alguns, como vimos) mais intenso do disco. Faz imaginar que esses trechos não só remetem à catarse do puro som (ecoam, mais ou menos distantes, desde o canto coral do samba aos lamentos sem palavra dos cantores populares românticos, quando a canção se entrega à melodia), mas lançam um apelo ao oculto e ao bestial. Espécie de uivo, grito abafado ou ganido, canto sensorial, só significante. “O amor é o maior mistério”, murmuram as últimas palavras da canção.
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De volta ao português depois de “Devil got my woman” e “Old salad”, “Não seremos os mesmos” se desembrenha um pouco das canções anteriores, e a paixão ainda enevoada dá lugar a um “pós-fim”; mais sereno, menos melancólico. Se as letras são complexas em Pássara, persiste ainda a simplicidade da canção de amor dos trabalhos prévios de Clemente, sem complemento (nem completude): “já faz um ano e meio”, diz um verso repetido, na linha de “sou eu quem quis matar”/ “sou eu quem quis roubar”, da primeira canção do álbum. Pouco importa ou já sabemos o quê, de quê. Paradoxo sobre paradoxo, a morte e a morte, desejo de desejo.
Penso no “dar intransitivado” das prostitutas, lido por Eliane Robert Moraes a partir de uma cena das memórias de Pedro Nava. Se há um sentido de ato completo, esse puro “dar”, ao mesmo tempo, instaura a suspeita do oculto. Entre o “universal” das experiências de amor e fim, e o convite estendido ao ouvinte para que insira suas particularidades nessas tramas porosas através do endereçamento, a “incompletude” de muitos versos também opera nesse paradoxo. Ato completo em si mesmo, suspende não só o sentido, mas as noções de pureza ou pecado. Diante desse esvaziamento, uma canção mais contida, como “Não seremos os mesmos”, é também, a seu modo, explícita, absoluta, corporal, sem deixar de ser furtiva, como a prima é também a puta (ao menos em algumas cidades mineiras, onde aprendi que há casas das primas e casas das primas).
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Chegamos enfim à canção-título, “Pássara”. A última do disco logo dá a volta na primeira, céu e mar revirados:
o céu caiu o mar virou
e o tempo me levou levou
até chegar a nenhum lugar
sem céu sem mar
Pernas abertas, terra e uma “terrífica materna mulher total” tornam a comparecer nessa canção-rock-suave, e a pergunta pela origem consuma sua faceta mais interessante: contra a paisagem, fixa, a passagem…, tudo pássara num tempo lógico, onírico, inventado.
A paisagem da infância, como a cena da fantasia, é desfeita e refeita no movimento permanente que embala todo o disco, bem condensado nos últimos versos de Pássara. Palavras e expressões curtas são meio cantadas, meio faladas, sempre aceleradas em uma espécie de inventário de monstros e sensações, especialmente ligados aos catalisadores da sexualidade feminina. Jogados entre a assonância do “a”, escancarado e fatal, e do discreto “i”, a mais lânguida das letras (“íncubo, diaba, bicho solto, passa, vaza, chupa sangue, aracnídea, minha igual”), ouvimos um novo apelo, agora mais revigorado, ao outro, ao Outro: “pássara, me come, queima a terra, voa alto, despetala, sol vermelho é bonito de se ver”.
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Na teoria musical, ouvi dizer, a “prima” é um ponto de partida, e também a mais aguda e fina das cordas de alguns instrumentos. Quanto mais aguda a nota, menos dura a onda. Pássara soa assim: uma vibração aguda, uma agoniazinha triste do que não dura (é duro). A violência de uma formiga saúva, que morde fininho, mar profundo; chafurda na terra vermelha, se lança a um voo de sol.
Eu sempre tive isso, mas só tomo consciência agora, tem a ver com a minha infância, que passei na casa dos meus avós na serra do mar, muito livre, mergulhado na água por horas, passava o dia com sal no corpo, muito sol e temporais incríveis, comendo frutas das árvores, tomando banho de cachoeira – era uma integração total!


Pássara nos permeia de primas: sagradas, profanas, primeiras, enfim.